sexta-feira, 29 de abril de 2011

Inverno

Hoje fui a Petrópolis, e o inverno começou.

Por isso entrei naquela fase de troca de armário, quando os casacos de cima são convidados a descer. Tirando a alergia que me ataca ferozmente nessa época do ano, adoro esses momentos de redescoberta. Todo casaco traz uma memória. É muito bom.


Também é bom se apaixonar novamente por certas peças esquecidas. Hoje reencontrei uma saia preta, evasê, na altura do joelho. Nunca me entendi com sua pala, vira e mexe a saia sambava. Mas hoje, depois de Petrópolis e do inverno, me ocorreu de combinar um cinto. E deu certo.

Engraçado hoje falar de Petrópolis, dia de um casamento  real. Ainda não vi nenhuma foto, mas já perguntei pra duas pessoas como era o vestido da noiva - é bom saber da imagem pelo outro. Cada uma o descreveu de modo diferente. Mas nesse parágrafo eu ia dizer que estou lendo a biografia de João Cândido - o almirante negro - escrita pelo historiador Fernando Granato (editora Selo Negro, 22 reais). É um ótimo livro, muito importante a gente conhecer as outras histórias, as que ninguém tinha contado. Além de João Cândido, a Selo Negro também publicou as biografias de Abdias do Nascimento, Nei Lopes.


Estou descobrindo que meu parente presidente Hermes da Fonseca era no mínimo uma pessoa equivocada. Que Deus o tenha, e ainda bem que ele existiu. Só assim pôde nascer Pedro Paulino, meu querido bisavô que renegou anos de história familiar em busca de mais autenticidade na vida.

Enfim, o bom da internet é que você pode falar o que quer, e não necessariamente alguém vai ouvir. Tomara que alguém escute, pelo menos, essa história:


"O historiador José Murilo de Carvalho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, fez uma recente descoberta, que ajuda a desvendar o lado humano de João Cândido. Enquanto esteve preso na ilha, ele passava os dias sob a luz de um candeeiro, fazendo bordados com motivos marítimos. Assim, encontrou uma forma de extravasar seus sentimentos, já que estava traumatizado pelas mortes, revoltado pela traição do governo e fragilizado pela situação de preso incomunicável.


Os bordados foram localizados por José Murilo de Carvalho em 1985, no Museu Regional de São João Del Rei (MG). Foram doados ao museu por Antônio Manuel de Souza Guerra, conhecido na cidade como 'Niquinho' e que conhecera João Cândido em 1910, quando estivera, como militar, servindo na Ilha das Cobras.


Os bordados de João Cândido têm o formato de uma toalha de rosto. O primeiro deles, 'O adeus do marujo', encontra-se em boas condições de conservação, a não ser por uma mancha na sua metade inferior, ao que tudo indica causada pelo derramamento de algum líquido.


Em sua parte superior, estão bordadas as letras JCF, iniciais de João Cândido Felisberto. No centro, o título 'O adeus do marujo'. À direita, a palavra 'ordem'. No centro da toalha, na horizontal, duas mãos se cumprimentam e, na vertical, uma âncora intercepta as mãos. Circundando as mãos e parte da âncora, dois ramos (que lembram os ramos de café e tabaco da bandeira imperial e das armas da República). Abaixo da âncora, o nome F. D. Martins (referência a Francisco Dias Martins, comandante rebelde do Bahia). Embaixo, do lado esquerdo, a palavra 'liberdade', e do lado direito, a data 'XXII de novembro de MCMX'."



segunda-feira, 11 de abril de 2011

Elvira



Mantenho a minha obsessão pela memória, pelo que há de vestígio no mundo. Dessa vez peço que minha tia traga antigas fotos de família, para que eu analise as roupas. São muitos os personagens. Todos são personagens. Mas a imagem de Elvira, a avó paterna do meu avô paterno, parece que fica grudada. Elvira foi mãe de Pedro Paulino; Pedro Paulino foi pai de Pedro Carlos; Pedro Carlos foi pai de Carlos Henrique; e Carlos Henrique é meu pai.


Fotos antigas transmitem qualquer coisa mais do que a imagem e todos os seus significados. Fotos antigas transbordam o enquadramento e alargam o campo de sentido: tudo nelas é imagem; tudo nelas é importante. A qualidade do papel, a letra escrita atrás das fotos, o amarelado, as datas escritas à mão, os formatos dos cortes, os rasgos, os amassados, os furos. Tudo nelas é vestígio.


Não sei o ano do nascimento de Elvira, nem o local, se tinha irmãos, quantos, na verdade, não sei quase nada sobre Elvira. Apenas que foi casada com João Severiano, aparentemente um homem bem mais velho. Teve muitos filhos, sendo várias meninas e três garotos. O menino mais novo era Pedro Paulino. Minha tia me disse que Elvira era má. Diz a lenda, como minha própria tia ressaltou. Suas fotos demonstram uma mulher muito bonita, refinada. Transmitem autoridade. Altiva.


Gostavam de gaiolas e passarinhos. Há algumas fotos da família - sem o patriarca, apenas muitas meninas, Elvira, e Pedro Paulino - num espaço que parece um terraço em Paris. E dentre essas fotos, gaiolas e passarinhos. Mais de uma vez Elvira aparece com um turbante típico do início do século XX. Acho que da década de 1910. Seus cabelos eram cacheados, e ela usava um topete muito charmoso.


Posso inventar todos os passados para Elvira. Posso dizer que ela nasceu em 13 de abril de 1880, que teve cinco filhas e três filhos, que casou, como uma mulher do seu tempo, por obrigação, com o homem que lhe recomendaram. Que era a autoridade respeitada da casa, e por isso sua fama de megera. Posso ainda dizer que Elvira adorava Paris, e gostava de manter passarinhos presos. Apesar de não ser uma boa moça prendada, Elvira tinha gosto e pose: apreciava os melhores pianistas, os mais famosos pintores (não os mais modernos), o melhor costureiro, falava francês e era boa em matemática. Não consigo inventar se Elvira tinha prazer na leitura. Arrisco dizer que não na leitura romântica indicada paras as boas moças do século XIX. Mas talvez Elvira adorasse Machado, e já o entendesse (apesar de não concordar e proibir a leitura às filhas).


Tudo isso, porém, não é comprovado, e eu preciso de alguém que me diga a verdade. Alguém que me conte a história, mesmo sabendo que essa pessoa também vai estar inventando. Talvez no caminho eu esbarre em alguma certidão, de casamento ou de óbito, um documento que reforce a ilusão de reconstrução de um passado.


De todas as poses de Elvira, a que mais chamou minha atenção foi essa em que estão muitas das filhas, não sei se todas, já algumas netas e uma de suas noras, Jeanne, uma francesa (olhando Elvira de frente, esta de preto que está à esquerda). Reparem no gesto de Elvira, toda branco, a mão apoiada no queixo, como se examinasse o mundo à sua frente. Como se avaliasse quem a vê. Sua imagem é natural e posada. Inexplicavelmente intrigante. A sensação é de que a todo momento Elvira vai saltar da foto e começar a conversar. Perguntar se a foto está terminada, se há necessidade de mais alguma pose.




Elvira, acho que entre 25 e 30 anos. Cálculos aproximados


Em 1925


Figura central da foto, a família se organizava em torno dela.
Pedro Paulino é esse menino à esquerda, de roupa de marinheiro e chapéu. Foto de 1910


Gaiolas e passarinhos
O turbante com pena


A figura austera de Elvira, toda de preto. Mas os filhos não me parecem infelizes


A foto brilhante, em que Elvira nos encara numa atitude absolutamente peculiar.
De novo, ela é a figura central da foto