segunda-feira, 23 de maio de 2011

A louça

Ser mulher às vezes é muito difícil. E como eu não posso ser homem, acho que o difícil é ser humano. Ontem domingo estive próxima de atividades muito próprias do universo feminino. Arrumei minha cama com muito cuidado, lavei alguma louça, organizei a mesa grande do almoço. Adoro essas funções da casa, me aproximam de uma dimensão de feminilidade diferente daquela que vivo dia a dia. Parece que me reconecto a algum passado que não me recordo, uma memória ancestral de algo que nunca cheguei a viver de fato, mas sinto como ecos de outras experiências. Tudo isso a louça. E a cama também.

Ao mesmo tempo, desde que as mulheres puderam sair de casa, a gente se depara com situações imprevisíveis, que ainda não foram domesticadas como a roupa de cama. Se no espaço da casa a vida já entrava e pronto, toma aí uma surpresa, na rua há infinitos outros meios de a mulher exercer a feminilidade, modos às vezes conflitantes. E o que pode parecer mais fácil, certa atitude que libera toda a liberdade de ser mulher e falar e fazer, cobra o reverso de fortaleza e solidão. Autossuficiência. Ninguém é autossuficiente, nem homens e nem mulheres. Mesmo que se diga, mesmo que se viva. Dói.

E ontem também num disco da Clara Nunes ouvi a "Iracema" do Adoniran Barbosa. Ai que música triste. Depois que Iracema vai embora, e não há mais nem um retrato que possa representá-la, o amante ainda guarda, como lembrança, suas meias e seus sapatos, literalmente o que sobrou de Iracema. A intimidade da meia e do sapato que vestiram um dia Iracema. É assim que ela ainda vive, permanece. Nada mais irônico ou mordaz, já que foram justamente os pés de Iracema que a conduziram à morte. Na música ela morre atropelada. É impressionante a capacidade que roupas e objetos têm de nos trazer uma memória, muito forte, ou de nos transportar para outra dimensão. No livro O casaco de Marx Peter Stallybrass fala lindamente sobre esse assunto. Assim a louça, assim também as meias e os sapatos.

Não consegui achar um vídeo bacana da Clara Nunes cantando "Iracema", mas encontrei esse da Elis Regina:


quinta-feira, 19 de maio de 2011

Adília Lopes

Hoje lembrei de Adília Lopes, poeta nascida em Lisboa em 1960. Adoro seu poema "Eclesiastes", acho lindo. A editora Cosac Naify, em parceria com a 7 Letras, publicou em 2002 uma antologia muito bem cuidada de Adília. Vale a pena.

"Eclesiastes

'Seulete suy et seulete vueil estre
Seulete m'a mon doulx ami laissiee'

Christine de Pisan

Tempo de foder
tempo de não foder
saber gerir
os tempos
compor
saber estar sozinha
para saber estar contigo
e vice-versa
aqui estão as minhas contas
do que foi"

Saber estar sozinha às vezes é tão difícil. Nem sempre é fácil vestir o próprio corpo.

domingo, 8 de maio de 2011

Vestido de papel de seda

Ontem participei da Marcha pela Legalização da Maconha. Concordo que a legalização pelo menos do cultivo caseiro combate o crime organizado. E marchei pela causa. Não estava com máquina de fotografia, uma pena, muitas roupas engraçadas. Mas o melhor figurino, pra mim, foi um cara com um vestido de papel de seda. Impecável e muito original. Com uma blusa verde por baixo, o vestido de papel de seda, por conta do material, ia acabando, assim como um cigarro. Figurino perfeito.

***

Às vezes o próprio corpo é a indumentária mais difícil de vestir. Hoje, dia das mães, começo a sentir a chegada "daquele período" (adoro period inglês). É uma melancolia que literalmente começa no útero. E o mundo inteiro, todos os objetos, as pessoas, os sentimentos, passam a ter cinco centímetros a mais de profundidade.
***

Há coisa de três semanas posei para a fotógrafa Anna Fischer. Ela adora retratos, e eu gostei muito desse que ela fez de mim.




 

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Inverno

Hoje fui a Petrópolis, e o inverno começou.

Por isso entrei naquela fase de troca de armário, quando os casacos de cima são convidados a descer. Tirando a alergia que me ataca ferozmente nessa época do ano, adoro esses momentos de redescoberta. Todo casaco traz uma memória. É muito bom.


Também é bom se apaixonar novamente por certas peças esquecidas. Hoje reencontrei uma saia preta, evasê, na altura do joelho. Nunca me entendi com sua pala, vira e mexe a saia sambava. Mas hoje, depois de Petrópolis e do inverno, me ocorreu de combinar um cinto. E deu certo.

Engraçado hoje falar de Petrópolis, dia de um casamento  real. Ainda não vi nenhuma foto, mas já perguntei pra duas pessoas como era o vestido da noiva - é bom saber da imagem pelo outro. Cada uma o descreveu de modo diferente. Mas nesse parágrafo eu ia dizer que estou lendo a biografia de João Cândido - o almirante negro - escrita pelo historiador Fernando Granato (editora Selo Negro, 22 reais). É um ótimo livro, muito importante a gente conhecer as outras histórias, as que ninguém tinha contado. Além de João Cândido, a Selo Negro também publicou as biografias de Abdias do Nascimento, Nei Lopes.


Estou descobrindo que meu parente presidente Hermes da Fonseca era no mínimo uma pessoa equivocada. Que Deus o tenha, e ainda bem que ele existiu. Só assim pôde nascer Pedro Paulino, meu querido bisavô que renegou anos de história familiar em busca de mais autenticidade na vida.

Enfim, o bom da internet é que você pode falar o que quer, e não necessariamente alguém vai ouvir. Tomara que alguém escute, pelo menos, essa história:


"O historiador José Murilo de Carvalho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, fez uma recente descoberta, que ajuda a desvendar o lado humano de João Cândido. Enquanto esteve preso na ilha, ele passava os dias sob a luz de um candeeiro, fazendo bordados com motivos marítimos. Assim, encontrou uma forma de extravasar seus sentimentos, já que estava traumatizado pelas mortes, revoltado pela traição do governo e fragilizado pela situação de preso incomunicável.


Os bordados foram localizados por José Murilo de Carvalho em 1985, no Museu Regional de São João Del Rei (MG). Foram doados ao museu por Antônio Manuel de Souza Guerra, conhecido na cidade como 'Niquinho' e que conhecera João Cândido em 1910, quando estivera, como militar, servindo na Ilha das Cobras.


Os bordados de João Cândido têm o formato de uma toalha de rosto. O primeiro deles, 'O adeus do marujo', encontra-se em boas condições de conservação, a não ser por uma mancha na sua metade inferior, ao que tudo indica causada pelo derramamento de algum líquido.


Em sua parte superior, estão bordadas as letras JCF, iniciais de João Cândido Felisberto. No centro, o título 'O adeus do marujo'. À direita, a palavra 'ordem'. No centro da toalha, na horizontal, duas mãos se cumprimentam e, na vertical, uma âncora intercepta as mãos. Circundando as mãos e parte da âncora, dois ramos (que lembram os ramos de café e tabaco da bandeira imperial e das armas da República). Abaixo da âncora, o nome F. D. Martins (referência a Francisco Dias Martins, comandante rebelde do Bahia). Embaixo, do lado esquerdo, a palavra 'liberdade', e do lado direito, a data 'XXII de novembro de MCMX'."



segunda-feira, 11 de abril de 2011

Elvira



Mantenho a minha obsessão pela memória, pelo que há de vestígio no mundo. Dessa vez peço que minha tia traga antigas fotos de família, para que eu analise as roupas. São muitos os personagens. Todos são personagens. Mas a imagem de Elvira, a avó paterna do meu avô paterno, parece que fica grudada. Elvira foi mãe de Pedro Paulino; Pedro Paulino foi pai de Pedro Carlos; Pedro Carlos foi pai de Carlos Henrique; e Carlos Henrique é meu pai.


Fotos antigas transmitem qualquer coisa mais do que a imagem e todos os seus significados. Fotos antigas transbordam o enquadramento e alargam o campo de sentido: tudo nelas é imagem; tudo nelas é importante. A qualidade do papel, a letra escrita atrás das fotos, o amarelado, as datas escritas à mão, os formatos dos cortes, os rasgos, os amassados, os furos. Tudo nelas é vestígio.


Não sei o ano do nascimento de Elvira, nem o local, se tinha irmãos, quantos, na verdade, não sei quase nada sobre Elvira. Apenas que foi casada com João Severiano, aparentemente um homem bem mais velho. Teve muitos filhos, sendo várias meninas e três garotos. O menino mais novo era Pedro Paulino. Minha tia me disse que Elvira era má. Diz a lenda, como minha própria tia ressaltou. Suas fotos demonstram uma mulher muito bonita, refinada. Transmitem autoridade. Altiva.


Gostavam de gaiolas e passarinhos. Há algumas fotos da família - sem o patriarca, apenas muitas meninas, Elvira, e Pedro Paulino - num espaço que parece um terraço em Paris. E dentre essas fotos, gaiolas e passarinhos. Mais de uma vez Elvira aparece com um turbante típico do início do século XX. Acho que da década de 1910. Seus cabelos eram cacheados, e ela usava um topete muito charmoso.


Posso inventar todos os passados para Elvira. Posso dizer que ela nasceu em 13 de abril de 1880, que teve cinco filhas e três filhos, que casou, como uma mulher do seu tempo, por obrigação, com o homem que lhe recomendaram. Que era a autoridade respeitada da casa, e por isso sua fama de megera. Posso ainda dizer que Elvira adorava Paris, e gostava de manter passarinhos presos. Apesar de não ser uma boa moça prendada, Elvira tinha gosto e pose: apreciava os melhores pianistas, os mais famosos pintores (não os mais modernos), o melhor costureiro, falava francês e era boa em matemática. Não consigo inventar se Elvira tinha prazer na leitura. Arrisco dizer que não na leitura romântica indicada paras as boas moças do século XIX. Mas talvez Elvira adorasse Machado, e já o entendesse (apesar de não concordar e proibir a leitura às filhas).


Tudo isso, porém, não é comprovado, e eu preciso de alguém que me diga a verdade. Alguém que me conte a história, mesmo sabendo que essa pessoa também vai estar inventando. Talvez no caminho eu esbarre em alguma certidão, de casamento ou de óbito, um documento que reforce a ilusão de reconstrução de um passado.


De todas as poses de Elvira, a que mais chamou minha atenção foi essa em que estão muitas das filhas, não sei se todas, já algumas netas e uma de suas noras, Jeanne, uma francesa (olhando Elvira de frente, esta de preto que está à esquerda). Reparem no gesto de Elvira, toda branco, a mão apoiada no queixo, como se examinasse o mundo à sua frente. Como se avaliasse quem a vê. Sua imagem é natural e posada. Inexplicavelmente intrigante. A sensação é de que a todo momento Elvira vai saltar da foto e começar a conversar. Perguntar se a foto está terminada, se há necessidade de mais alguma pose.




Elvira, acho que entre 25 e 30 anos. Cálculos aproximados


Em 1925


Figura central da foto, a família se organizava em torno dela.
Pedro Paulino é esse menino à esquerda, de roupa de marinheiro e chapéu. Foto de 1910


Gaiolas e passarinhos
O turbante com pena


A figura austera de Elvira, toda de preto. Mas os filhos não me parecem infelizes


A foto brilhante, em que Elvira nos encara numa atitude absolutamente peculiar.
De novo, ela é a figura central da foto



sábado, 12 de março de 2011

Mariinha no carnaval

Sangue é coisa séria. Minha avó materna, Mariinha, morreu quando eu tinha quase oito anos. Não lembro muito dela, mas o pouco que eu lembro é bem nítido. Mariinha costurava, e bem, segundo minha mãe. Ela gostava de pintar blusas, tecidos, saquinhos de sapato. Lembro de uma tarde que passei na casa de uma amiga dela, muitas senhoras pintando. As senhoras faziam desse jeito, cada reunião era numa casa diferente. Nunca me disseram que era assim, mas imagino que fosse, porque também me lembro dessas reuniões na casa da minha avó, na Urca. A casa dela, aliás, é algo que me lembro com muita nitidez. Os detalhes das portas, o chão da sala de jantar, a cor do banheiro de visitas, o pote de cânfora na bancada, a cozinha, o quarto do meio e uma enciclopédia pra crianças antiga, de capa vermelha. E ainda mais: a iluminação da casa da minha avó.

Mas talvez a lembrança mais forte que eu tenha dela seja a textura da sua pele. É inexplicável. Cada um guarda consigo um pedacinho do outro, e assim as pessoas continuam: as pessoas continuam na fala do outro. Tenho um primo que se lembra muito bem da voz da minha avó. Ele diz que era um instrumento musical. Minha mãe vira e mexe sente o cheiro da minha avó. Eu lembro da pele dela.

Meus avós tinham uma casa afastada da cidade, no Recreio dos Bandeirantes (isso era muito longe há 20 anos), e os primos passavam uns dias das férias nessa casa, sem os pais, só primos e avós. Um dia eu, sempre chorona, estava morrendo de saudade dos meus pais, e chorava. Minha avó, com uma paciência que só as avós têm, me consolava. Ela estava sentada, eu no colo dela, e Mariinha me balançava. Dizia: "Não chora, sua pele vai ficar enrugada que nem maracujá." Eu não gostava quando minha avó dizia isso, e continuava a chorar. Esse é um momento chave da minha memória, da minha história. Foi ali que a pele da minha avó ficou impressa em mim.

Assim como uma memória chave que eu tenho da minha avó paterna, Nilda, é ela pescando num final de tarde no Posto 6, em Copacabana, com o maiô verde-água mais lindo do mundo. Foi ali que eu me apaixonei pelas cores.

O engraçado é eu gostar de roupas e costura, quando Mariinha um dia também gostou, e infelizmente nós nem tivemos tempo pra conversar sobre isso. Engraçado a gente também gostar de pintar tecido. Engraçado eu ter a mão e a letra da minha avó Nilda. Um dia eu perguntei se ela era professora. Nilda disse que não. Mas mesmo assim um dia eu quis ser.

Ainda aproveitando o rabo do carnaval, tudo isso pra mostrar a foto de Mariinha no carnaval de 1946. Com flores, laços e babados.


Mariinha, carnaval 1946