segunda-feira, 11 de abril de 2011

Elvira



Mantenho a minha obsessão pela memória, pelo que há de vestígio no mundo. Dessa vez peço que minha tia traga antigas fotos de família, para que eu analise as roupas. São muitos os personagens. Todos são personagens. Mas a imagem de Elvira, a avó paterna do meu avô paterno, parece que fica grudada. Elvira foi mãe de Pedro Paulino; Pedro Paulino foi pai de Pedro Carlos; Pedro Carlos foi pai de Carlos Henrique; e Carlos Henrique é meu pai.


Fotos antigas transmitem qualquer coisa mais do que a imagem e todos os seus significados. Fotos antigas transbordam o enquadramento e alargam o campo de sentido: tudo nelas é imagem; tudo nelas é importante. A qualidade do papel, a letra escrita atrás das fotos, o amarelado, as datas escritas à mão, os formatos dos cortes, os rasgos, os amassados, os furos. Tudo nelas é vestígio.


Não sei o ano do nascimento de Elvira, nem o local, se tinha irmãos, quantos, na verdade, não sei quase nada sobre Elvira. Apenas que foi casada com João Severiano, aparentemente um homem bem mais velho. Teve muitos filhos, sendo várias meninas e três garotos. O menino mais novo era Pedro Paulino. Minha tia me disse que Elvira era má. Diz a lenda, como minha própria tia ressaltou. Suas fotos demonstram uma mulher muito bonita, refinada. Transmitem autoridade. Altiva.


Gostavam de gaiolas e passarinhos. Há algumas fotos da família - sem o patriarca, apenas muitas meninas, Elvira, e Pedro Paulino - num espaço que parece um terraço em Paris. E dentre essas fotos, gaiolas e passarinhos. Mais de uma vez Elvira aparece com um turbante típico do início do século XX. Acho que da década de 1910. Seus cabelos eram cacheados, e ela usava um topete muito charmoso.


Posso inventar todos os passados para Elvira. Posso dizer que ela nasceu em 13 de abril de 1880, que teve cinco filhas e três filhos, que casou, como uma mulher do seu tempo, por obrigação, com o homem que lhe recomendaram. Que era a autoridade respeitada da casa, e por isso sua fama de megera. Posso ainda dizer que Elvira adorava Paris, e gostava de manter passarinhos presos. Apesar de não ser uma boa moça prendada, Elvira tinha gosto e pose: apreciava os melhores pianistas, os mais famosos pintores (não os mais modernos), o melhor costureiro, falava francês e era boa em matemática. Não consigo inventar se Elvira tinha prazer na leitura. Arrisco dizer que não na leitura romântica indicada paras as boas moças do século XIX. Mas talvez Elvira adorasse Machado, e já o entendesse (apesar de não concordar e proibir a leitura às filhas).


Tudo isso, porém, não é comprovado, e eu preciso de alguém que me diga a verdade. Alguém que me conte a história, mesmo sabendo que essa pessoa também vai estar inventando. Talvez no caminho eu esbarre em alguma certidão, de casamento ou de óbito, um documento que reforce a ilusão de reconstrução de um passado.


De todas as poses de Elvira, a que mais chamou minha atenção foi essa em que estão muitas das filhas, não sei se todas, já algumas netas e uma de suas noras, Jeanne, uma francesa (olhando Elvira de frente, esta de preto que está à esquerda). Reparem no gesto de Elvira, toda branco, a mão apoiada no queixo, como se examinasse o mundo à sua frente. Como se avaliasse quem a vê. Sua imagem é natural e posada. Inexplicavelmente intrigante. A sensação é de que a todo momento Elvira vai saltar da foto e começar a conversar. Perguntar se a foto está terminada, se há necessidade de mais alguma pose.




Elvira, acho que entre 25 e 30 anos. Cálculos aproximados


Em 1925


Figura central da foto, a família se organizava em torno dela.
Pedro Paulino é esse menino à esquerda, de roupa de marinheiro e chapéu. Foto de 1910


Gaiolas e passarinhos
O turbante com pena


A figura austera de Elvira, toda de preto. Mas os filhos não me parecem infelizes


A foto brilhante, em que Elvira nos encara numa atitude absolutamente peculiar.
De novo, ela é a figura central da foto



6 comentários:

  1. A Elvira é, de fato, uma figura que chama a atenção. Fiquei com vontade de conhecer a Elvira da minha família.

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  2. Carols, a Elvira era tua trisavó, né?? A foto que ela de preto com os filhos da medo da cara dela. Turbante com pena é o que há!!
    Hihihi...:P

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  3. é mesmo um universo paralelo afundar-se nas entranhas das lembranças fotográficas.
    Adorei a viagem dessas!

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  4. Docinho, como sempre, de uma escrita linda...beijos mil.

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  5. Adorei o coque atopetado e as golas altas de materiais translúcidos. A produção que mais me impressionou foi a das rosas na mesinha, um luxo misterioso!

    Maya

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  6. Anônimo disse...Adorei seu texto, esse tamborilar de memória.
    Essa Elvira era - é - forte. Magnetizava a família na época, e até hoje o faz. Você a resgata, mas no final é ela quem se impõe, pura altivez, feminilidade agressiva, presença através da matéria e descendência. Ressurge em tons sépia, confundindo cenários esmaecidos e marcas impressas pelo tempo e nos enfrenta com o corpo e o olhar no agora.
    Dizem que as mulheres daquele tempo eram fracas e submissas. Elvira parece transgredir esta tese. Envolta no mistério da própria história(dê a versão que vc quiser e será a sua verdade), ela é sem dúvida, para o nosso olhar, uma mulher contemporânea que se revela na imagem e manifesta em você.

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